No ano de 2017, Marcelo Ribeiro ameaçou sua então companheira Mariane. A vítima representou e solicitou medidas protetivas de urgência, as quais -deferidas pelo Juízo - foram,
ainda naquele ano, descumpridas pelo investigado.
Tendo os autos chegado ao Ministério Público (inquérito policial referente ao crime de ameaça, no qual já fazia constar o novo registro de descumprimento das medidas protetivas),
o Promotor de Justiça denunciou Marcelo pelo crime de ameaça em concurso material com o delito de desobediência.
Deverá o aluno, de acordo com a jurisprudência dominante, indicar o acerto ou não da providência tomada pelo representante do Ministério Público, oportunidade em que deverá
discorrer acerca da aplicabilidade ou não dos institutos despenalizadores da Lei 9.099/95 ao crime previsto na Lei 11.340/2006.
Até 2018, com a edição da Lei nº 13.641, a Lei da Violência Doméstica não trazia em seu bojo qualquer tipo penal. Nesta época, relevante parcela da doutrina a classificava como uma de Lei de natureza eminentemente processual. O seu artigo primeiro já bem delineia suas finalidades:
Art. 1 o Esta Lei cria mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8 o do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher, da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher e de outros tratados internacionais ratificados pela República Federativa do Brasil; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; e estabelece medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar.
a. PREVENIR e COIBIR a violência doméstica e familiar contra a mulher.
b. CRIAÇÃO do Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a mulher.
c. ASSISTÊNCIA à mulher vítima e PROTEÇÃO à mulher vítima de violência familiar.
Medidas Protetivas: não pressupõem crime nem existência de processo penal, podendo ser aplicadas no transcorrer de processo civil. Pressupõem, sim, violência doméstica e familiar contra a mulher e o pedido da vítima da violência (art. 11, V, c/c art. 12, III, da LMP). Parece claro, todavia, que, no curso do processo ou até mesmo da investigação criminal, é conferida ao Ministério Público legitimidade para solicitá-las em favor da vítima ou de eventuais incapazes que estejam sujeitos aos “contornos” da situação de violência doméstica.
A questão central do problema posto ao aluno cinge-se à tipificação ou não do delito de desobediência (art. 330 do Código Penal) antes da entrada em vigor da Lei 13.641/2018 em 03 de abril, quando foi introduzido à LMP o tipo penal:
Art. 24-A. Descumprir decisão judicial que defere medidas protetivas de urgência previstas nesta Lei: Pena – detenção, de 3 (três) meses a 2 (dois) anos.
§ 1 o A configuração do crime independe da competência civil ou criminal do juiz que deferiu as medidas.
§ 2 o Na hipótese de prisão em flagrante, apenas a autoridade judicial poderá conceder fiança.
§ 3 o O disposto neste artigo não exclui a aplicação de outras sanções cabíveis.
DUAS CORRENTES ACERCA DO TEMA HAVIA:
1) O descumprimento às medidas protetivas configuraria crime de desobediência. Tratava- se, inclusive, do entendimento proposto pelo Fórum Nacional de Juízes de Violência Doméstica e Familiar contra Mulheres (Enunciado 27): ENUNCIADO 27: O descumprimento das medidas protetivas de urgência previstas na Lei nº 11.340/2006 configura prática do crime de desobediência previsto no art. 330 do Código Penal, a ser apurado independentemente da prisão preventiva decretada. (REVOGADO no VII FONAVID – Foz de Iguaçu)¹ .
Neste sentido houve decisões do TJRS:
“Entretanto, em relação aos delitos de desobediência à ordem judicial (referentes aos 2º, 3º, 5º e 7º fatos descritos na denúncia) em decorrência de o acusado ter descumprido medidas protetivas impostas em razão da Lei Maria da Penha, entendo impositivo que se proceda à absolvição, de ofício, do acusado. Isso porque, respeitados os posicionamentos em sentido contrário, entendo que tal descumprimento possui cláusula resolutiva própria, consistente na prisão preventiva do infrator. Na verdade, a Lei Maria da Penha prevê consequência específica para o descumprimento das medidas cautelares, caso não se mostrem suficientes, qual seja, conforme acima referido, a prisão preventiva do agressor. E, considerando o caráter de subsidiariedade do delito de desobediência , não há razões para aplicá-lo diante da especificidade prevista no diploma supracitado. Precedentes do STJ e deste Órgão Julgador. Portanto, o agente que desobedece à medida protetiva, já foi notificado previamente de que seu comportamento importará em prisão preventiva. Assim, não há desobediência na forma prevista nos artigos 330 ou 359 do Código Penal, mas situação que implica na observância da sanção respectiva elencada na Lei nº 11.340/06, devendo ser o réu absolvido por tais delitos, com base no artigo 386, inciso III, do CPP.” Apelação Crime Nº 70070912464, Segunda Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: José Antônio Cidade Pitrez, Julgado em 14/09/2017
Entendendo pela tipificação do crime estipulado no art. 359 do CP - STJ HC 220392/RS (Ministro Jorge Mussi – 5ª Turma – Dje 10/3/2014):
DESOBEDIÊNCIA A DECISÃO JUDICIAL SOBRE PERDA OU SUSPENSÃO DE DIREITO (ARTIGO 359 DO CÓDIGO PENAL). DESCUMPRIMENTO DE MEDIDAS PROTETIVAS PREVISTAS NA LEI 11.340/2006. ALEGADA CARACTERIZAÇÃO DO CRIME PREVISTO NO ARTIGO 330 DO ESTATUTO REPRESSIVO. INCIDÊNCIA DO PRINCÍPIO DA ESPECIALIDADE. INCIDÊNCIA DO TIPO ESPECÍFICO DISPOSTO NO ARTIGO 359. CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO EVIDENCIADO. 1. Da leitura do artigo 359 do Código Penal, constata-se que nele incide todo aquele que desobedece decisão judicial que suspende ou priva o agente do exercício de função, atividade, direito ou múnus. 2. A decisão judicial a que se refere o dispositivo em comento não precisa estar acobertada pela coisa julgada, tampouco se exige que tenha cunho criminal, bastando que imponha a suspensão ou a privação de alguma função, atividade, direito ou múnus. Doutrina. 3. A desobediência à ordem de suspensão da posse ou a restrição do porte de armas, de afastamento do lar, da proibição de aproximação ou contato com a ofendida, bem como de frequentar determinados lugares, constantes do artigo 22 da Lei 11.340/2006, se enquadra com perfeição ao tipo penal do artigo 359 do Estatuto Repressivo, uma vez que trata-de de determinação judicial que suspende ou priva o agente do exercício de alguns de seus direitos. 4. O artigo 359 do Código Penal é específico para os casos de desobediência de decisão judicial, motivo pelo qual deve prevalecer sobre a norma contida no artigo 330 da Lei Penal.
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1 http://www.compromissoeatitude.org.br/enunciados-fonavid-forum-nacional-de-violencia-domestica- e-familiar-contra-a-mulher/
2) O entendimento amplamente dominante, por outro lado, o qual faz reconhecer que a oferta de denúncia pelo crime de desobediência no caso está incorreta, é no sentido de que o descumprimento das medidas protetivas de urgência antes da edição do art. 24-A da LMA não tipificava o crime de desobediência.
A presente ementa bem delineia os argumentos que sustentam tal vertente: “Entretanto, em relação aos delitos de desobediência à ordem judicial (referentes aos 2º, 3º, 5º e 7º fatos descritos na denúncia) em decorrência de o acusado ter descumprido medidas protetivas impostas em razão da Lei Maria da Penha, entendo impositivo que se proceda à absolvição, de ofício, do acusado. Isso porque, respeitados os posicionamentos em sentido contrário, entendo que tal descumprimento possui cláusula resolutiva própria, consistente na prisão preventiva do infrator. Na verdade, a Lei Maria da Penha prevê consequência específica para o descumprimento das medidas cautelares, caso não se mostrem suficientes, qual seja, conforme acima referido, a prisão preventiva do agressor. E, considerando o caráter de subsidiariedade do delito de desobediência , não há razões para aplicá-lo diante da especificidade prevista no diploma supracitado. Precedentes do STJ e deste Órgão Julgador. Portanto, o agente que desobedece à medida protetiva, já foi notificado previamente de que seu comportamento importará em prisão preventiva. Assim, não há desobediência na forma prevista nos artigos 330 ou 359 do Código Penal, mas situação que implica na observância da sanção respectiva elencada na Lei nº 11.340/06, devendo ser o réu absolvido por tais delitos, com base no artigo 386, inciso III, do CPP.” (Apelação Crime Nº 70070912464, Segunda Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: José Antônio Cidade Pitrez, Julgado em 14/09/2017)
Também neste sentido o STJ 2
PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. DESCUMPRIMENTO DE MEDIDAS PROTETIVAS. CRIME DE DESOBEDIÊNCIA. ATIPICIDADE. PRECEDENTES DO STJ. ART. 24-A DA LEI 11.340/06. NOVATIO LEGIS IN PEJUS. IRRETROATIVIDADE. AGRAVO IMPROVIDO. 1. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça firmou-se no sentido de que o descumprimento de medidas protetivas impostas nos termos a Lei 11.340/06 não configura o delito do art. 359 do Código Penal. 2. Em se tratando de novatio legis in pejus, cuja irretroatividade se impõe, conforme os arts. 5º, XL, da CF e 1º do CP, não incide o art. 24-A da Lei Maria da Penha aos fatos anteriores à publicação da Lei 13.641/18, que criou tipo penal específico para a conduta de desobedecer decisões judiciais que impõem medidas protetivas. 3. Agravo regimental improvido. AgRg no AREsp 1216126 / MG - Ministro NEFI CORDEIRO – Sexta Turma - DJe 03/09/2018
Sobre a prisão preventiva para garantir as medidas protetivas:
ANTES LEI 12.403/11
Art. 313, IV: se o crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos da lei específica, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência.
DEPOIS LEI 12.403/11 (Junho 2011)
Art. 313, III: se o crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência;
Sobre a aplicabilidade dos institutos despenalizadores da Lei 9.099/95 ao crime previsto no art. 24-A da LMP, uma vez que o tipo penal traz em seu preceito secundário pena de detenção de 3 meses a dois anos:
O legislador, conferindo tratamento diferenciado para os autores de violência doméstica, em dois diferentes dispositivos, tratou de restringir a aplicação de penas alternativas, afastando, assim, (1) a incidência das regras gerais do Código Penal e, expressamente, (2) a incidência da Lei nº 9.099/95 aos crimes praticados no contexto trabalhado na Lei 11.340:
Art. 17. É vedada a aplicação, nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, de penas de cesta básica ou outras de prestação pecuniária, bem como a substituição de pena que implique o pagamento isolado de multa.
Art. 41. Aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei no 9.099, de 26 de setembro de 1995 Ocorre, todavia, que o delito previsto no art. 24-A não visa a tutelar especificamente a mulher vítima de violência doméstica. Tem, sim, como bem jurídico objeto de proteção a Administração Pública, de modo que a vedação do art. 41 acima transcrito não incidiria no caso.
Faz-se referência, por outro lado, à posição dos Professores Rogério Sanches e Ronaldo Pinto, que sustentam inaplicável ao crime do art. 24-A da LMP as disposições da Lei dos Juizados Especiais Criminais 3 . Sustentam os autores que entendimento em sentido contrário corresponderia a verdadeiro contrassenso. Para tanto destacam: “o art. 41 é expresso ao proibir a aplicação da Lei 9.099/1995 aos crimes perpetrados no âmbito da violência doméstica. A nosso ver, a disposição que veda a concessão de fiança pela autoridade policial, após a prisão em flagrante do agente (§2º), revela a intenção do legislador de, efetivamente, retirar o crime do art. 24-A da esfera das infrações de menor potencial ofensivo, tal como ocorre com as demais infrações penais envolvendo violência doméstica e familiar contra a mulher”.
A análise dos renomados Professores parece vir ao encontro e estar respaldada pela Súmula 536 do STJ, que afirma que a suspensão condicional do processo e a transação penal não se aplicam na hipótese de delitos sujeitos ao rito da Lei Maria da Penha.
Assim, apesar de o objeto jurídico tutelado pelo art. 24-A da LMP ser a Administração Pública tem-se que o delito está atrelado necessariamente ao contexto da violência doméstica
demandando a aplicação do respectivo rito e, assim, imune, portanto, está aos institutos despenalizadores da Lei 9.099/95.
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3 Cunha, Rogério Sanches e Ronaldo Pinto. Leis Penais Especiais. Editora Jus PODIVM. 2018. P. 1653.
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