Imagine que o Município de Cabroró tenha legislado sobre parcelamento do solo, estabelecendo como módulo mínimo para lotes 360 m².
João, morador desse município, ocupa, como seu, um lote urbano que há muito encontra-se sem utilização efetiva por seu proprietário, pelo prazo de 6 anos ininterruptos e sem qualquer manifestação contrária. No imóvel, João mora com sua esposa, e dois filhos. Não é proprietário de nenhum outro imóvel, pelo fato de já ter alienado anteriormente imóvel urbano adquirido via usucapião urbano especial.
Após um tempo, João resolveu ajuizar uma ação para reconhecer o direito de usucapião urbana especial em relação ao referido imóvel, visando a aquisição da propriedade.
Contudo, o pedido declaratório foi rejeitado pelo Juiz, sob o argumento de que tinha por objeto imóvel com área inferior ao módulo mínimo definido pelo Plano Diretor do respectivo município para os lotes urbanos, conquanto o plano diretor proíbe a existência de lotes menores que 360 m².
Considerando as normas constitucionais e infralegais, responda os seguintes itens:
a) O referido município possuía competência para legislar sobre parcelamento do solo, como o fez?
b) quais são os requisitos da usucapião urbana? É necessário que João apresente um justo título com a ação, como elemento indispensável ao reconhecimento do pedido?
c) Foi correta a decisão do Magistrado?
d) João tem direito ao pedido feito na ação?
Comentários:
A questão aborda a temática usucapião urbana especial, prevista no art. 183 da Constituição federal (CF).
a) O referido município possuía competência para legislar sobre parcelamento do solo, como o fez?
A CF de 88 conferiu aos municípios natureza de ente federativo autônomo, dotado da capacidade de auto-organização e autolegislação, autogoverno e autoadministração.
As competências municipais estão enumeradas, sobretudo, no artigo 30 da CF:
Art. 30. Compete aos Municípios:
I - legislar sobre assuntos de interesse local;
II - suplementar a legislação federal e a estadual no que couber;
III - instituir e arrecadar os tributos de sua competência, bem como aplicar suas rendas, sem prejuízo da obrigatoriedade de prestar contas e publicar balancetes nos prazos fixados em lei;
IV - criar, organizar e suprimir distritos, observada a legislação estadual;
V - organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte coletivo, que tem caráter essencial;
VI - manter, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, programas de educação infantil e de ensino fundamental;
VII - prestar, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, serviços de atendimento à saúde da população;
VIII - promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano;
IX - promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local, observada a legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual.
A competência dos municípios pode ser dividida em competência legislativa e competência administrativa.
A competência legislativa corresponde a competência exclusiva para legislar sobre assuntos de interesse local e a competência para suplementar a legislação federal ou estadual, no que couber.
A competência administrativa autoriza o município a atuar sobre os assuntos de interesse local, identificados a partir do princípio da predominância do interesse, especialmente sobre as matérias expressamente consignadas nos incisos III ao IX do artigo 30 da CF.
No uso da competência suplementar, podem os municípios suprir as lacunas da legislação federal e estadual, regulamentando as respectivas matérias para ajustar a sua execução as peculiaridades locais. Porém, não poderão os municípios contraditar a legislação federal e estadual existente, tampouco extrapolar a sua competência para disciplinar, apenas, assunto de interesse local.
IMPORTANTE!!! Cabe ao município estabelecer a política de desenvolvimento urbano (CF, art. 182). |
Pois bem, feita essa explanação geral, percebe-se que o Município de Cabroró está sim autorizado a legislar sobre a matéria por força do que dispõe o art. 30, incisos I, II e VIII da CF:
b) quais são os requisitos da usucapião urbana? É necessário que João apresente um justo título com a ação, como elemento indispensável ao reconhecimento do pedido?
Existem várias modalidades de usucapião. No corpo da Constituição Federal (CF) encontram-se dais espécies:
a) USUCAPIÃO ESPECIAL URBANA ou PRO MISERO (art. 183)
Art. 183. Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinqüenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.
§ 1º O título de domínio e a concessão de uso serão conferidos ao homem ou à mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil.
§ 2º Esse direito não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez.
b) USUCAPIÃO ESPECIAL RURAL ou PRO LABORE (art. 191)
Art. 191. Aquele que, não sendo proprietário de imóvel rural ou urbano, possua como seu, por cinco anos ininterruptos, sem oposição, área de terra, em zona rural, não superior a cinqüenta hectares, tornando-a produtiva por seu trabalho ou de sua família, tendo nela sua moradia, adquirir-lhe-á a propriedade.
Parágrafo único. Os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião.
O tema em análise trata-se da USUCAPIÃO ESPECIAL URBANA. São os requisitos:
ESQUEMATIZANDO:
a) 250m² : a pessoa deve estar na posse de uma área urbana de, no máximo, 250m² ;
b) 5 anos: a pessoa deve ter a posse mansa e pacífica dessa área por, no mínimo, 5 anos ininterruptos, sem oposição de ninguém;
c) Moradia: o imóvel deve estar sendo utilizado para a moradia da pessoa ou de sua família;
d) Não ter outro imóvel: a pessoa não pode ser proprietária de outro bem imóvel (urbano ou rural).
É necessário justo título?
NÃO. Ressalte-se que os elementos necessários a essa modalidade de usucapião vem previstos em rol taxativo pela CF, não se podendo aceitar que uma interpretação leve a outras exigências, distintas das constitucionalmente previstas.
Portanto, NÃO se exige que a pessoa prove que tinha um justo título ou mesmo que estava de boa-fé.
c) Foi correta a decisão do Magistrado?
Não foi correta a decisão do Magistrado.
Para a análise da questão, basta o preenchimento dos requisitos exigidos pelo texto constitucional, não podendo ser erigido obstáculo outro, de índole infraconstitucional, para impedir que se aperfeiçoe, em favor do interessado, o modo originário de aquisição de propriedade.
Analisando-se, em tese, o imóvel em comento, tem-se que este está perfeitamente identificado e localizado dentro da área urbana do respectivo município, o que possibilita a configuração da usucapião urbana especial.
A modalidade de aquisição da propriedade imobiliária foi consignada na CF como forma de permitir o acesso dos mais humildes a melhores condições de moradia, bem como para fazer valer o respeito à dignidade da pessoa humana, erigido a um dos fundamentos da República (art. 1º, inc. III, da CF).
Assim, a desconformidade de sua metragem com normas e posturas municipais que disciplinam os módulos urbanos em sua respectiva área territorial NÃO podem obstar a implementação de direito constitucionalmente assegurado a quem preencher os requisitos para tanto exigidos pela Constituição da República; até porque trata-se de modo originário de aquisição da propriedade.
A decisão citada no enunciado acabou por negar vigência ao comando exarado na norma do art. 183 da CF.
Esse é o entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF), lançado em sede de repercussão geral. Segundo decidiu o STF, se forem preenchidos os requisitos do art. 183 da CF/88, a pessoa terá direito à usucapião especial urbana e o fato de o imóvel em questão não tender ao mínimo dos módulos urbanos exigidos pela legislação local para a respectiva área (dimensão do lote) não é motivo suficiente para se negar esse direito, que tem índole constitucional. Cite-se a ementa e a tese fixada:
“(...) preenchidos os requisitos do art. 183 da CF, o reconhecimento do direito à usucapião especial urbana não pode ser obstado por legislação infraconstitucional que estabeleça módulos urbanos na respectiva área em que situado o imóvel (dimensão do lote).” (RE 422.349, rel. min. Dias Toffoli, julgamento em 29-4-2015, Plenário, DJE de 5-8-2015, com repercussão geral.)
Recurso extraordinário. Repercussão geral. Usucapião especial urbana. Interessados que preenchem todos os requisitos exigidos pelo art. 183 da Constituição Federal. Pedido indeferido com fundamento em exigência supostamente imposta pelo plano diretor do município em que localizado o imóvel. Impossibilidade.
A usucapião especial urbana tem raiz constitucional e seu implemento não pode ser obstado com fundamento em norma hierarquicamente inferior ou em interpretação que afaste a eficácia do direito constitucionalmente assegurado. Recurso provido.
1. Módulo mínimo do lote urbano municipal fixado como área de 360 m2. Pretensão da parte autora de usucapir porção de 225 m2 (que atende ao exigido pela CF, 250 m²), destacada de um todo maior, dividida em composse.
2. Não é o caso de declaração de inconstitucionalidade de norma municipal.
3. TESE APROVADA: preenchidos os requisitos do art. 183 da Constituição Federal, o reconhecimento do direito à usucapião especial urbana não pode ser obstado por legislação infraconstitucional que estabeleça módulos urbanos na respectiva área em que situado o imóvel (dimensão do lote).
d) João tem direito ao pedido feito na ação?
Não tem direito. Mas cuidado, não pelos argumentos lançados pelo Juiz, mas sim pelo fato de já ter adquirido lote, em momento anterior, pela usucapião urbana especial.
Veja o que diz o art. 183, §2º:
§ 2º Esse direito não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez.
Melhor Resposta - Maria de Lourdes Costa Xavier:
a) No caso em comento, não há inconstitucionalidade na lei municipal sobre parcelamento do solo por falta de competência. Nos termos do artigo 30, I e VIII, da Constituiçao Federal de 1988 (CF/88), o Município é competente para legislar sobre assunto de interesse local e também para promover o ordenamento territorial por meio do parcelamento do solo. Desse modo, ao legislar sobre referido parcelamento, estabelecendo módulo mínimo para lotes, referido ente deu concretude aos comandos constitucionais citados, não havendo qualquer ilegalidade nisso.
Ademais, é possível que o Município legisle sobre direito urbanístico, matéria da competência comum da União e dos Estados, nos termos do art. 24, I, da Cf/88, desde que o faça de forma a suplementar a legislação federal e estadual, consoante art. 30, II, o que ocorreu na hipótese.
Nao obstante tais fatos, é certo que, na forma do disposto no art. 182, é dever do ente municipal ordenar corretamente o espaço urbano, sendo o Plano Diretor considerado o regramento básico sobre o assunto. Contudo, referida lei não esgota o tema, de modo que o Município pode legislar sobre direito urbanístico por leis outras que não citado Plano, desde que com ele compatíveis. Neste sentido já se manifestou a jurisprudência dos Tribunais Superiores.
Desse modo, cabível dizer que o Município possuía competência para legislar sobre parcelamento do solo, como ocorreu na situação em comento.
b) Nos termos do art. 183 da CF/88 e do art. 9º da Lei 10.257/01, são requisitos para a usucapião urbana a posse com "animus domini", ininterrupta e sem oposição, por cinco anos, de área urbana de até 250 metros quadrados, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, desde que não seja proprietário de outro imóvel. Além disso, referido direito não pode ser concedido mais de uma vez ao mesmo possuidor.
Desnecessária a apresentação de justo título para tal modalidade de usucapião, tendo em vista não haver tal exigência nos diplomas legais citados, ao contrário do que ocorre com a usucapião prevista nos arts. 1242 e 1243 do Código Civil (CC/02). Por justo título entende-se aquele capaz de fazer o possuidor acreditar que detém a condição de proprietário do bem, ainda que não a possua.
A razão de ser da ausência de tal exigência está no fato de que a usucapião em questão tem por objetivo assegurar a propriedade daqueles que não a conseguiriam de outro modo, sendo um instrumento de promoção social, de modo que não seria possível exigir um título daquele que, sem ter para onde ir, instala-se no terreno com base em seu direito de ter um teto.
c) Incorreta a decisão do magistrado. Conforme entendimento dos Tribunais Superiores, não se mostra cabível o indeferimento do pedido de usucapião especial pelo fato de o lote ser inferior ao módulo urbano estabelecido em lei municipal. Isso porque a legislação infraconstitucional não pode estabelecer requisitos mais gravosos que impeçam a aquisição de um direito constitucionalmente assegurado, quando a própria CF/88 não determinou isso. Desse modo, a promoção da regularização urbanística e do direito à moradia (art. 6º) devem prevalecer sobre a norma municipal, razão pela qual incorreta a decisão do juízo.
d) No caso aqui posto, João não tem direito ao pedido feito na ação. E isso ocorre pelo fato de que o parágrafo 2º do art. 183 veda que o direito em questão seja concedido mais de uma vez ao mesmo possuidor, havendo comando idêntico na lei 10.257/01. João já foi beneficiado com o instituto em questão anteriormente, sendo certo que o fato de não mais possuí-lo não afasta tal proibição.
Referida usucapião foi concebida para ajudar pessoas em situação social de ausência de moradia, aí incluída a vulnerabilidade advinda de tal situação, de modo que a concretização do direito social se dá suficientemente com apenas um imóvel. Permitir o acesso de uma mesma pessoa ao benefício por mais de uma vez acabaria por desconfigurar o instituto, incentivando até mesmo uma ocupação desordenada do espaço urbano e especulação imobiliária.
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