Enunciado:
A empresa Limpa e Trata LTDA mantém com o Município de Capadócias contrato de prestação de serviços de limpeza e tratamento de lixo urbano. Ocorre que, vencido o referido contrato, o prefeito Zé do Povão não o prorrogou antes do vencimento, tampouco instaurou novo procedimento licitatório para contratação do objeto mencionado.
Decorridos seis meses da cessação da prestação de serviços de limpeza e tratamento de lixo urbano, o Município de Capadócias encontra-se em situação calamitosa, inclusive com a propagação de doenças decorrentes do acúmulo de lixo.
Pressionado pela população, o prefeito Zé do Povão decide instaurar procedimento licitatório de dispensa de licitação com base no art. 24, IV, da Lei n.º 8.666/93:
Art. 24. É dispensável a licitação:
IV - nos casos de emergência ou de calamidade pública, quando caracterizada urgência de atendimento de situação que possa ocasionar prejuízo ou comprometer a segurança de pessoas, obras, serviços, equipamentos e outros bens, públicos ou particulares, e somente para os bens necessários ao atendimento da situação emergencial ou calamitosa e para as parcelas de obras e serviços que possam ser concluídas no prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias consecutivos e ininterruptos, contados da ocorrência da emergência ou calamidade, vedada a prorrogação dos respectivos contratos;
Na qualidade de procurador municipal, disserte sobre a viabilidade da dispensa de licitação, abordando necessariamente o conceito e as repercussões jurídicas do instituto denominado “emergência fabricada”.
Comentários:
O art. 24, IV, da Lei n.º 8.666/93 estatui a possibilidade de dispensa de licitação nos casos de emergência ou de calamidade pública, quando caracterizada urgência de atendimento de situação que possa ocasionar prejuízo ou comprometer a segurança ou a saúde da coletividade. A autorização para dispensa, contudo, é condicionada à contratação do que seja estritamente necessário ao atendimento da situação emergencial, limitando-se o prazo para conclusão da parcela contratada a 180 dias consecutivos, ininterruptos e improrrogáveis.
A emergência, de que trata o art. 24, IV, da Lei n.º 8.666/93, instaura, portanto, uma situação grave, que obriga a Administração à adjudicação direta do objeto contratual tendente a evitar ou mitigar os riscos provocados pelo dano iminente e suas eventuais consequências.
Tal emergência associa-se, via de regra, a um evento inesperado, inusitado, imprevisível, ou até mesmo previsível, mas de gravidade excepcional, para o qual a Administração não se planejou, nem contribuiu por meio de uma conduta comissiva ou omissiva. Nestes casos, está-se diante da chamada emergência real, cuja causa remonta a fatores de ordem objetiva.
Contudo, a emergência também pode decorrer de um planejamento deficiente, de falta de diligência, inércia, ou incúria ou má administração. São os casos da chamada emergência ficta ou fabricada, cuja causa diz com fatores subjetivos.
A autorização para dispensa de licitação de que trata o art. 24, IV, entretanto, NÃO leva em consideração a causa da emergência, mas sim a falta de tempo para seguir o procedimento normal e rotineiro de solução da crise, a fim de afastar o risco de dano iminente e efetivo ou amenizar suas consequências nocivas.
É sabido que o entendimento tradicional do TCU não admitia a contratação emergencial em casos de emergência ficta ou fabricada, verbis (Decisão 247/94):
“2. Responder ao ilustre Consulente, quanto à caracterização dos casos de emergência ou de calamidade pública, em tese:
a) que, além da adoção das formalidades previstas no art. 26 e seu parágrafo único da Lei nº 8.666/93, são pressupostos da aplicação do caso de dispensa preconizado no art. 24, inciso IV, da mesma Lei:
a.1) que a situação adversa, dada como de emergência ou de calamidade pública, não se tenha originado, total ou parcialmente, da falta de planejamento, da desídia administrativa ou da má gestão dos recursos disponíveis, ou seja, que ela não possa, em alguma medida, ser atribuída à culpa ou dolo do agente público que tinha o dever de agir para prevenir a ocorrência de tal situação;
a.2) que exista urgência concreta e efetiva do atendimento a situação decorrente do estado emergencial ou calamitoso, visando afastar risco de danos a bens ou à saúde ou à vida de pessoas;
a.3) que o risco, além de concreto e efetivamente provável, se mostre iminente e especialmente gravoso;
a.4) que a imediata efetivação, por meio de contratação com terceiro, de determinadas obras, serviços ou compras, segundo as especificações e quantitativos tecnicamente apurados, seja o meio adequado, efetivo e eficiente de afastar o risco iminente detectado;”
Contudo, atualmente predomina, tanto no âmbito do TCU como do STJ, a posição da doutrina majoritária. Marçal Justen Filho se pronuncia neste sentido:
“Isso não significa afirmar a possibilidade de sacrifício de interesses curados pelo Estado em consequência da desídia do administrador. Havendo risco de lesão a interesses, a contratação deve ser realizada, punindo-se o agente que não adotou as cautelas necessárias. A questão apresenta relevância especialmente no tocante à comumente denominada ‘emergência fabricada’, em que a Administração deixa de tomar tempestivamente as providências necessárias à realização da licitação previsível. Assim, atinge-se o termo final de um contrato sem que a licitação necessária à nova contratação tivesse sido realizada. Isso coloca a Administração diante do dilema de fazer licitação (e cessar o atendimento a necessidade impostergáveis) ou realizar a contratação direta (sob a invocação da emergência). O que é necessário é verificar se a urgência existe efetivamente e, ademais, se a contratação é a melhor possível nas circunstâncias. Deverá fazer-se a contratação pelo menor prazo e com o objetivo mais limitado possível, visando a afastar o risco de dano irreparável. Simultaneamente, deverá desencadear-se a licitação indispensável. Ou seja, a desídia administrativa não poderá redundar na concretização de danos irreparáveis aos valores buscados pelo Estado, mas se resolverá por outra via. Comprovando-se que, mediante licitação formal e comum, a Administração teria obtido melhor resultado, o prejuízo sofrido deverá ser indenizado pelo agente que omitiu as providências necessárias. Ademais disso, deverá punir-se exemplarmente o agente público que omitiu o desencadeamento da licitação.”
O referido ponto de vista doutrinário, segundo o qual o artigo 24, inciso IV, da Lei nº 8.666/1993 comporta também as situações de emergência ficta ou fabricada, acabou sendo acolhido pelo TCU. No voto que fundamenta a Decisão nº 138/1998 do Plenário, afirmou o relator:
“(...) 7. Os textos da lei e da doutrina acima transcritos não deixam dúvida de que o planejamento não é fator impeditivo ou autorizativo para que os administradores públicos procedam à dispensa de licitação por questões emergenciais, fundamentada no dispositivo legal acima referido [art. 24, IV, da Lei n.º 8.666/93].
8. Sobre o tema, Lúcia Valle de Figueiredo e Sérgio Ferraz, citando Antonio Carlos Cintra do Amaral, afirmam ("in" Dispensa e Inexigibilidade de Licitação, 2ª edição, Editora Revista dos Tribunais, 1992, São Paulo - SP): “Mais adiante, vai distinguir a emergência real, resultante do imprevisível, daquela resultante da incúria ou inércia administrativa. A ambas se dá idêntico tratamento, no que atina à possibilidade de contratação direta. Porém, não exime o responsável pela falha administrativa de sofrer sanções disciplinares compatíveis”.
8. Obviamente, como se depreende do acima transcrito, não pode o administrador incorrer em DUPLO ERRO: além de não planejar as suas atividades, permitir que a sua desídia cause maiores prejuízos à Administração e/ou a terceiros.
9. Enfatizo, dessa forma, que a dispensa de licitação, com fundamento no art. 24, inciso IV, da Lei nº 8.666/93, se caracteriza como uma inadequação aos procedimentos normais de licitação, constituindo-se, sob esse prisma, num poder-dever e não numa faculdade para o administrador, sob pena de ser responsabilizado pelos prejuízos que a sua inércia venha a causar, independentemente de qualquer planejamento. (...)
13. Diante do exposto, forçoso é reconhecer que a ausência de planejamento e a dispensa de licitação devem ser tratadas como irregularidades independentes e distintas. Sob essa ótica, é aconselhável examinar se a dispensa da licitação se deu em observância aos requisitos exigidos pelo inciso IV do art. 24 da Lei 8.666/93 e em seguida analisar o contexto em que a mesma ocorreu, ou seja, se aconteceu em razão de fatos supervenientes causados ou não por incúria do administrador. ”
Portanto, em suma, para que seja dispensável a licitação com fundamento no artigo 24, inciso IV, da Lei nº 8.666/1993, NÃO se afigura necessária a demonstração de que a emergência não decorreu de fatores de ordem subjetiva, relacionados à falta de planejamento adequado, de desídia, de incúria ou de má gestão por parte do gestor público.
Basta, pois, que seja atestada a existência de uma situação de crise emergencial, tendente a colocar em risco a saúde e a segurança coletividade, demandando, assim, uma reação expedita da Administração no sentido de dissipar o perigo real ou de minorar as suas consequências.
Em ambos os casos – emergência real ou “fabricada” -, contudo, é de rigor que a contratação direta cumpra os seguintes requisitos, enumerados pelo TCU:
a) existência de fundado risco de dano iminente, efetivo e gravoso;
b) demonstração de que a contratação é o meio adequado para afastar este perigo concreto;
c) insuficiência de tempo para observar o procedimento normal e rotineiro de solução da crise (por exemplo, abertura de licitação) e consequente necessidade de atuação imediata e urgente da Administração;
d) limitação do objeto do contrato às obras, aos bens e aos serviços estritamente necessários à eliminação do perigo concreto; e
e) limitação da duração do contrato ao período suficiente para a observância do procedimento normal e rotineiro de solução da crise (por exemplo, até o encerramento da licitação), não podendo ultrapassar cento e oitenta dias a contar do surgimento da situação emergencial.
Melhor resposta - Ricardo Pereira:
A contratação direta emergencial se baseia em situações excepcionais, em que um fato extraordinário, que foge à previsibilidade ordinária do administrador, traz a necessidade irresistível de a Administração contratar em curto espaço de tempo que se mostra incompatível com a tramitação de uma licitação.
Quando a situação de emergência decorre da ação dolosa ou culposa do administrador, seja ela consequência da falta de planejamento, da desídia administrativa ou da má gestão dos recursos públicos tem-se a caracterização da emergência que é “fabricada” pelo próprio agente público responsável.
A ampla maioria da doutrina e a atual jurisprudência do TCU admitem que a licitação seja dispensada em caso de emergência fabricada. Assim, a principal consequência prática dessa circunstância é que os responsáveis pela “fabricação” devem ser punidos – isto após regular apuração em processo administrativo. Estaria incorrendo em duplo erro o administrador que, ante a situação de iminente perigo, deixasse de adotar as situações emergenciais recomendáveis, ainda que a emergência tenha sido causada por negligência administrativa.
Na eventual situação aludida, o responsável responderá pela inércia, não pela contratação emergencial. A solução de continuidade dos serviços de limpeza e tratamento de lixo é maléfica para a municipalidade; logo, ainda que a causa que resultou na situação de emergência, como decidiu o TCU, decorra da falta ou insuficiência do planejamento administrativo, a situação de emergência legal estará caracterizada, podendo ensejar a contratação direta.
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