TEM DIA QUE ATÉ GÁS FALTA
PARTE 2
- Ítalo, a palestra não estava prevista para amanhã?
- Será hoje, às 13h.
Um corpo para enterrar, uma feira inteira para auxiliar, uma palestra para ministrar e um pedido da D. Lili para atender. Olhei para o céu, algo contrariado, e reclamei:
- Hoje, o Senhor passou dos limites.
Sabia da palestra, mas acreditava não fosse naquele dia. A agenda eletrônica tem aliviado, nos últimos tempos, o trabalho da memória. Mas ela não faz milagres.
Por outro lado, o texto curto do compadre não deixava muita margem para reticências. Não me deixei vencer:
- Ítalo, veja, por favor, se consegues colocar para o fim da tarde.
Até lá, já terei conseguido desatar os nós, pensei esperançoso.
Os moradores do entorno da praça estavam em cima do deputado, em conversa nada amistosa. O empreiteiro interessado ajudava no aprofundamento da crise.
A situação do deputado se complicava, apesar da habilidade que revelou para conduzir as discussões.
Aproximei-me.
Vamos ouvir o defensor. Desta vez, foi o parlamentar que aproveitou para fazer ligações.
- Moradores e feirantes não são inimigos. Ambos os grupos possuem interesses legítimos e o deputado aqui está para nos ajudar a encontrar uma saída que compatibilize as pretensões em aparente conflito.
- Doutor, a praça não é um direito nosso?
- Assim como o é o dos feirantes de trabalhar.
- Mas aqui não é uma feira.
- Também não é ainda uma praça.
- Doutor, e a decisão judicial? Não tem que ser cumprida?
- Sem dúvida. Não nos esqueçamos, porém, de que atrás de cada banca dessas há uma família. Essas pessoas precisam sobreviver. O que devemos garantir é que eles continuem a ter fonte de renda. Vocês terão sua praça, o que é justo. A reforma será feita. Só precisamos nos assegurar de que isso não ocorrerá com o sacrifício do sustento dessas famílias.
O “colocar-se” no lugar do outro é exercício de solidariedade. Ajuda a compreender a dificuldade alheia e reduz o nível do conflito. A questão da sobrevivência de famílias trouxe reflexão.
Havia um quadro claro de animosidade entre feirantes e moradores.
Algumas acusações ainda se fizeram ouvir.
O deputado retornou com o telefone em punho. Um desavisado veria na mão dele um simulacro de arma de fogo.
- Pessoal, atenção de todos! Estou aqui, no viva voz, com o Secretário. Santo viva voz!!!!
- Secretário, é o deputado Maurício. Estão lhe ouvindo o defensor, os feirantes e os moradores do Amendoeira. Os trabalhadores rogam permanecer até o fim do ano. Isso lhes assegurará um fim de ano digno.
- O defensor concorda?
O trabalho do deputado ganhava corpo e consistência. Embora a solução fosse paliativa, aqueles pouco mais de trinta dias eram muito importantes para os feirantes.
Não era o caminho que havia escolhido. O dele, porém, era útil e necessário. É preciso saber o momento de recuar.
- Sim, Secretário. O deputado está certo. É o melhor caminho neste momento.
- E os moradores concordam?
Pela primeira vez se fez silêncio na feira naquela tumultuada manhã. Um silêncio mortal e tenso. Acho que até o trânsito parou. Sempre há curioso transitando por aí. A solução estava próxima. Bastava um aceno positivo.
- Mas eles sairão mesmo no dia 02 de janeiro?
Perguntou um representante dos moradores, visivelmente vencido.
Quase gritei “gol”.
O secretário pediu alguns minutos. Acho que ele também foi se reclamar para o Altíssimo.
Era o suspiro de que precisava para abrir as portas do cemitério.
Liguei para o Dr. Valdo, diretor do IML. Expliquei o difícil caso do irmão de dona Maria. Minha expectativa era a de que o IML colocasse o corpo numa câmara frigorífica enquanto pedia o alvará no plantão judicial.
- Doutor, o senhor me disse que o corpo está na casa da irmã?
- Sim, Dr. Valdo.
- Então já foi identificado pelo IML e a família já tem a declaração de óbito. Basta ir ao cartório.
Dr. Valdo, um distinto profissional, é muito culto. Formado em direito e medicina. Há quem cometa essa insanidade. Seguramente, ela sabia o que dizia. Mas eu não podia errar. Dona Maria já havia sofrido muito.
Liguei para o cartório.
- É possível, sim, doutor.
- Mesmo sem a certidão de nascimento?
- Sim.
- Dra. Joaquina, perdoe-me a insistência, mas preciso de uma certeza sua de que não dará errado.
- Eu mesma irei atendê-la, doutor.
Vi que o deputado já estava fazendo as pazes com os moradores.
Dona Maria teria enfim uma “boa” notícia.
- Dona Maria leve o documento amarelo.
- Deixei na Defensoria, doutor. Como o senhor havia dito. Que via crucis, a dessa senhora, pensei.
Minha única estagiária só trabalhava pela manhã. O Núcleo estava fechado e o diacho do documento amarelo ali enterrado.
- Marília, por favor, pegue um táxi e se encontre com D. Maria na Defensoria para devolver a declaração de óbito.
O plano estava bem traçado e desta vez não haveria percalços. A assistida pegaria o documento no meio da tarde, em seguida, iria ao cartório lavrar o registro do óbito.
Não seria possível que desse errado uma segunda vez.
Logo após explicar a ela o procedimento, o compadre me avisou que a palestra ocorreria apenas às 16h. Falaria sobre a solução de casos difíceis para futuros defensores públicos.
Chamei os feirantes para uma conversa final.
Expliquei os riscos de uma remoção forçada e as providências que adotaria. Disse ainda que eles não eram obrigados a aceitar o acordo. Mas, aceito, o cumprimento se impunha.
- O local para onde querem nos levar não tem banheiro. Disse um feirante angustiado.
- Nem água encanada, energia elétrica e nem as árvores que cobrem as barracas aqui. Afirmou outro, com dedo em riste.
- Vão nos jogar lá e esquecer, doutor.
Disse a eles que não ficariam esquecidos e que a luta deles passaria a ser a da Defensoria também.
O aceite não veio sem aflição.
- Defensor, o Secretário concordou. Natal garantido para os feirantes.
Afirmou o deputado com o ar de quem acabara de vencer uma íngreme caminhada.
Finalmente a tempestade começava a se desanuviar.
Agora só restava dona Lili. Teria que passar em casa, antes da palestra, para um indispensável banho. Não teria como fugir dela.
- Brigue com sua esposa, mas nunca, nunca mesmo, contrarie sua sogra.
Alertava, com absoluta razão, minha vó.
Ela me esperava à porta com cara de poucos amigos.
- D. Lili, a senhora revolveu o problema do gás? Era muita cara de pau. Nem eu aguentei. Por um segundo, ela até quis ficar com raiva, mas já era tarde. Rimo-nos os dois.
Terminada a palestra, liguei para dona Maria pela enésima vez.
- A senhora conseguiu a certidão?
- Doutor, o homem disse que só com a certidão de nascimento.
Mais um obstáculo e eu mesmo iria enterrar o corpo.
- A senhora está onde?
- Acabei de pegar o ônibus.
- Desça onde estiver. Retorne, por favor, ao cartório que a certidão vai ser expedida.
- Certeza?
- Sim. Estou indo para lá.
Antes mesmo de chegar, a certidão foi expedia. Quase convertia o “meus pêsames” em “meus parabéns”.
Os feirantes foram removidos no dia 02 de janeiro, conforme acertado. Sem polícia e nem violência. As vendas caíram bruscamente.
Dezoito reivindicações foram apresentadas pela Defensoria em favor deles para melhorias no novo local.
Na última semana, estive no ato que entregou a maior parte delas. O Senhor Martins teria me recebido com um abraço, não fosse a pandemia. Não faltou afeto e nem honrosas lembranças do deputado.
Ao me despedir, foi-me apresentada uma sacola cuidadosamente preenchida com os produtos da feira.
- Seu Martins, não posso receber. O senhor sabe. Só se eu pagar.
- Não doutor, aqui está nossa gratidão.
- Pois receba o meu pagamento. Nele, vai a tranquilidade de minha consciência.