O Estado, em tema de restrição à esfera jurídica de qualquer cidadão, não pode exercer a sua autoridade de maneira abusiva ou arbitrária. Assim, é possível concluir que assiste ao cidadão (e ao administrado), mesmo em procedimentos de índole administrativa, a prerrogativa indisponível do contraditório e da plenitude de defesa, com os meios e recursos a ela inerentes, consoante prescreve a Constituição da República em seu art. 5º, LV:
Art. 5º (...)
LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;
Ademais, é sempre pertinente observar que os princípios mencionados, base que solidifica o devido processo legal, possuem três dimensões distintas e que devem ser respeitadas para a sua concretização:
1) direito de informação, que obriga o órgão julgador a informar à parte contrária dos atos praticados no processo e sobre os elementos dele constantes;
2) direito de manifestação, que assegura ao defendente a possibilidade de manifestar-se oralmente ou por escrito sobre os elementos fáticos e jurídicos constantes do processo;
3) direito de ver seus argumentos considerados, que exige do julgador capacidade, apreensão e isenção de ânimo para contemplar as razões apresentadas.
Dessa perspectiva não se afastou a Lei nº 9.784, de 29.1.1999, que regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal. O art. 2ºdesse diploma legal determina, expressamente, que “a Administração Pública obedecerá aos princípios da ampla defesa e do contraditório”.
Com fulcro nesses argumentos, a jurisprudência do Pretório Excelso consolidou-se no sentido de garantir o respeito aos princípios constitucionais em análise também perante o Tribunal de Contas da União. O entendimento foi solidificado na Súmula Vinculante nº 03, nos seguintes termos:
Nos processos perante o Tribunal de Contas da União asseguram-se o contraditório e a ampla defesa quando da decisão puder resultar anulação ou revogação de ato administrativo que beneficie o interessado, excetuada a apreciação da legalidade do ato de concessão inicial de aposentadoria, reforma e pensão.
Nesse primeiro momento, salta aos olhos a exceção criada peloPretório Excelso, no tocante à “apreciação da legalidade do ato de concessão inicial de aposentadoria, reforma e pensão”. Resumindo de maneira extremamente didática a distinção criada, merece reprodução teor do voto do ex-Ministro Carlos Ayres Britto no MS 24.268, rel. min. Ellen Gracie, red. p/ o ac. min. Gilmar Mendes, P, j. 5-2- 2004, DJ de 17-9-2004:
“(...) quando o Tribunal de Contas aprecia a legalidade de um ato concessivo de pensão, aposentadoria ou reforma, ele não precisa ouvir a parte diretamente interessada, porque a relação jurídica travada, nesse momento, é entre o Tribunal de Contas e a Administração Pública”. Abordando a diretriz sumulada, o emérito julgador prossegue:
“Num segundo momento, porém, concedida a aposentadoria, reconhecido o direito à pensão ou à reforma, já existe um ato jurídico que, no primeiro momento, até prove o contrário, chama-se ato jurídico perfeito, porque se perfez reunindo os elementos formadores que a lei exigia para tal. E, nesse caso, a pensão, mesmo fraudulenta (...), ganha esse tônus de juridicidade”.
No entanto, não é sempre que o Supremo Tribunal Federal entende ser possível afastar os princípios do contraditório e da ampla defesa quando da análise da legalidade da concessão inicial de aposentadoria, reforma ou pensão.
A jurisprudência do Pretório Excelso já se manifestou pela necessidade de observância do contraditório e da ampla defesa em duas ocasiões envolvendo a referida exceção:
1) Necessidade de observância do contraditório e da ampla defesa após o prazo de cinco anos a contar da aposentadoria:
A inércia da Corte de Contas, por mais de cinco anos, a contar da aposentadoria, consolidou afirmativamente a expectativa do ex- servidor quanto ao recebimento de verba de caráter alimentar. Esse aspecto temporal diz intimamente com: a) o princípio da segurança jurídica, projeção objetiva do princípio da dignidade da pessoa humana e elemento conceitual do Estado de Direito; b) a lealdade, um dos conteúdos do princípio constitucional da moralidade administrativa (caput do art. 37). São de se reconhecer, portanto, certas situações jurídicas subjetivas ante o poder público, mormente quando tais situações se formalizam por ato de qualquer das instâncias administrativas desse Poder, como se dá com o ato formal de aposentadoria. (...) 5. O prazo de cinco anos é de ser aplicado aos processos de contas que tenham por objeto o exame de legalidade dos atos concessivos de aposentadorias, reformas e pensões. Transcorrido in albis o interregno quinquenal, a contar da aposentadoria, é de se convocar os particulares para participarem do processo de seu interesse, a fim de desfrutar das garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa (art. 5º, LV). [MS 25.116, rel. min. Ayres Britto, P, j. 8-9-2010, DJE 27 de 10-2-2011.]
2) Necessidade de observância do contraditório e da ampla defesa após o prazo de cinco anos a contar do recebimento do processo administrativo de aposentadoria ou pensão no TCU:
II — A recente jurisprudência consolidada do STF passou a se manifestar no sentido de exigir que o TCU assegure a ampla defesa e o contraditório nos casos em que o controle externo de legalidade exercido pela Corte de Contas, para registro de aposentadorias e pensões, ultrapassar o prazo de cinco anos, sob pena de ofensa ao princípio da confiança — face subjetiva do princípio da segurança jurídica. Precedentes. III — Nesses casos, conforme o entendimento fixado no presente julgado, o prazo de 5 (cinco) anos deve ser contado a partir da data de chegada ao TCU do processo administrativo de aposentadoria ou pensão encaminhado pelo órgão de origem para julgamento da legalidade do ato concessivo de aposentadoria ou pensão e posterior registro pela Corte de Contas. [MS 24.781, rel. min. Ellen Gracie, red. p/ o ac. min. Gilmar Mendes, P, j. 2-3- 2011, DJE 110 de 9-6-2011.]
Anoto, ademais, que o entendimento inicialmente firmado por esta Corte foi no sentido de que o TCU sequer se submetia aos princípios do contraditório e da ampla defesa na apreciação da legalidade do ato de concessão inicial de aposentadoria, reforma e pensão (Súmula Vinculante 3), já que a concessão de benefício constitui ato complexo, no qual não é assegurada a participação do interessado. 5. Somente a partir do julgamento dos MS 25.116 e MS 25.403, o Supremo Tribunal Federal, em homenagem aos princípios da boa-fé e da segurança jurídica, mitigou esse entendimento, apenas para o fim de assegurar o contraditório e a ampla defesa quando ultrapassados mais de cinco anos entre a chegada do processo no TCU e a decisão da Corte de Contas. Este precedente foi publicado em 10-2-2011, sendo, portanto, superveniente à decisão do TCU sobre o benefício do ora agravante. De todo modo, no caso não transcorreram 5 (cinco) anos entre a entrada do processo no TCU, em 14-11-2003 (fl.88), e o seu julgamento, em 14-2-2006 (decisão publicada no DOU de 17-2-2006). [MS 26.069 AgR, voto do rel. min. Roberto Barroso, 1ª T, j. 24-2-2017, DJE 47 de 13-3-2017.]
Além das exceções criadas pelo Supremo Tribunal Federal, relacionadas com a demora na análise da legalidade do ato inicial de concessão de aposentadoria, reforma ou pensão, outras duas questões merecem atenção: ato do TCU que exclua benefício de pensão e acórdão de natureza genérica da referida Corte de Contas.
No primeiro caso, é pertinente observar a distinção entre a redação sumulada e o caso concreto. A Súmula Vinculante nº 3 excepciona o contraditório e a ampla defesa em casos de “apreciação da legalidade do ato de concessão inicial (...)”. O ato que exclui o benefício de pensão previamente concedido, no entanto, se encaixa na regra prevista pela SV nº 3. Por ser didático, colaciona-se julgado do STF nesse sentido:
3. A Súmula Vinculante 3 do STF excepciona a observância prévia do contraditório e da ampla defesa na apreciação da legalidade do ato de concessão de aposentadoria, reforma e pensão pelo Tribunal de Contas da União. Contudo, o presente caso não se enquadra na exceção prevista, pois não se trata de concessão inicial de aposentadoria, de reforma ou de pensão. Dessa forma, podendo a decisão resultar anulação ou revogação de ato administrativo que beneficie o interessado, cabível o exercício da ampla defesa e do contraditório. No entanto, não se verifica abertura de prazo pelo TCU, a fim de que houvesse oportunidade de defesa a (...) diante da exclusão do seu benefício de pensão. 4. Portanto, não merece ser reformada a decisão agravada que anulou o acórdão 1.843/2006 do TCU para que se possibilite que (...) exerça o contraditório e a ampla defesa a que tem direito, com o restabelecimento da pensão até a nova apreciação pela Corte de Contas. [MS 27.031 AgR, rel. min. Luiz Fux, 1ª T, j. 8-9-2015, DJE 193 de 28-9-2015.]
Por fim, permitir que houvesse contraditório e ampla defesa mesmo em acórdão genérico da Corte de Contas, que atinge um número indeterminado de servidores, acabaria por inviabilizar a atividade fiscalizatória do referido órgão constitucional. Nesse sentido:
DIREITO ADMINISTRATIVO. AGRAVO INTERNO EM RECLAMAÇÃO. REGIME DA LEI 8.038/1990 E DO CPC/1973. VIOLAÇÃO À SÚMULA VINCULANTE 3. ACÓRDÃO DIRIGIDO AO ÓRGÃO CONTROLADO, QUE ATINGE A GENERALIDADE DOS SERVIDORES. AUSÊNCIA DE ADERÊNCIA ESTRITA. 1. Não possui relação de aderência estrita com a Súmula Vinculante 3 – que garante o contraditório e a ampla defesa nos processos perante o Tribunal de Contas da União – o acórdão do TCU determinando providência que atinge a generalidade dos servidores do órgão controlado, considerados em sua coletividade. 2. Contraditório que deverá ser exercido no órgão de origem. Necessidade de se manter a viabilidade da atividade fiscalizatória da Corte de Contas. 3. A reclamação não se presta à análise de suposta desconformidade de ato com o direito objetivo, não podendo funcionar como sucedâneo recursal ou substituto da ação própria cabível. [Rcl 7.411 AgR, rel. min. Roberto Barroso, 1ª T, j. 26-5-2017, DJE 118 de 6-6-2017.]
Dessa forma, podemos concluir que os princípios do contraditório e da ampla defesa também são imperativos no processo administrativo, em particular quando da decisão puder resultar anulação ou revogação de ato administrativo que beneficie o interessado. A despeito da exceção prevista na SV 3, que trata especificamente do TCU, existem diretrizes que devem ser observadas, sob pena de violar direito constitucional basilar para o Estado Democrático de Direito.