Imagine a seguinte situação hipotética: Pedro pilotava sua motocicleta em velocidade acima da permitida, quando foi abalroado por veículo conduzido por Carlos, que trafegava bêbado e na contramão. Acionado o serviço de urgência, a ambulância estadual tardou alguns minutos além do que seria necessário para chegar ao local, vindo Pedro à óbito no caminho para o hospital.
Quem pode ser responsabilizado pelo óbito de Pedro? Quem teve culpa? Ou melhor: quem teve a culpa preponderante? É possível responsabilizar o Estado pelo atraso na chegada da ambulância, ainda que por culpa concorrente? É possível a exclusão de culpas? Até que ponto uma culpa é exclusiva, concorrente ou excluída?
Amigos, as respostas a esses questionamentos, como não poderia deixar de ser, são encontradas na doutrina de José Aguiar Dias¹, o grande nome da responsabilidade civil no país. Segundo o autor, a partir do critério da autonomia das culpas, deve-se questionar quem teve a melhor chance para evitar o dano e não o fez. Em outras palavras, “o que se deve indagar é, pois, qual dos fatos, ou culpas, foi decisivo para o evento danoso”, isto é, qual dos atos imprudentes fez com que o outro, que não teria consequências se considerado de forma isolada, se tornasse irrelevante para produção do dano.
A culpa concorrente, portanto, deve ser excluída sempre quando o ato, embora culposo, tiver se tornado inócuo à produção dos danos, frente à suficiência e gravidade da conduta de outrem, que pode ser também a própria vítima. Nas palavras do autor: “a culpa grave, necessária e suficiente para o dano exclui a concorrência de culpa, isto é, a culpa sem a qual o dano não se teria produzido. (...) A responsabilidade é de quem interveio com culpa eficiente para o dano. Queremos dizer que há culpas que excluem a culpa de outrem. Sua intervenção no evento é tão decisiva que deixa sem relevância outros fatos culposos porventura intervenientes no acontecimento”.
Nesse ponto, o autor, embora admita a possibilidade, alerta que a melhor chance nem sempre é a última chance ou, em inglês, a last chance. Com efeito, na cadeia de desdobramento das causas, deve-se perquirir quem teve a melhor oportunidade de evitar o dano e não aquele que teve a last chance.
“Consideramos em culpa quem teve não a last chance, mas a melhor oportunidade e não a utilizou. Isso é exatamente uma consagração da causalidade adequada, porque se alguém tem a melhor oportunidade de evitar o evento e não a aproveita, torna o fato do outro protagonista irrelevante para sua produção”.
Como o autor salienta, afastar-se a ideia da last chance para que seja considerada causa do dano apenas a melhor oportunidade de evitá-lo é imperativo da teoria da causalidade adequada. Assim, na esteira de Sérgio Cavalieri Filho², em sede de responsabilidade civil, nem todas as condições que concorrem para o resultado são relevantes ou equivalentes (como no caso da responsabilidade penal), mas somente aquela que foi a mais adequada a produzir concretamente o resultado. Além de se indagar se uma determinada condição concorreu concretamente para o evento, é ainda preciso apurar se, em abstrato, ela era adequada a produzir aquele efeito. Entre duas ou mais circunstâncias que concretamente concorreram para a produção do resultado, causa adequada será aquela que teve interferência decisiva.
Para fins de prova, isso tudo serve para quê?
Caro aluno, não é raro o ajuizamento de demandas indenizatórias contra o Estado e, por isso mesmo, também não é rara a cobrança do tema em provas práticas. Assim, se o enunciado da questão proporcionar a abordagem da culpa da vítima, desfile conhecimento a partir das lições dos mestres acima citados.
De início, defenda a culpa exclusiva da vítima³, sustentando que, a partir do critério da autonomia das culpas, é possível afirmar que a culpa da vítima foi grave, necessária e suficiente à produção do dano, tornando inócuo, mesmo em tese, o ato ou omissão do Estado. Registre que, por aplicação da teoria da causalidade adequada, mesmo que o comportamento estatal tenha sido o último na cadeia de fatores (como no caso da demora da ambulância), a melhor oportunidade de evitar o dano é que deve ser reputada causa adequada à sua produção. Aduza que, embora se considere a conduta do Estado culposa, esta foi excluída pela conduta da vítima, que foi decisiva e suficiente para o evento danoso. Ao final, uma vez demonstrada a culpa exclusiva da vítima, consigne que restou rompido o nexo de causalidade imputado à conduta do Estado, pelo que deve ser afastado totalmente o dever de indenização.
Por prudência e em homenagem ao princípio da eventualidade, não deixe de argumentar, em tópico sucessivo, a culpa concorrente da vítima, de modo que, uma vez superada a tese anterior, seja possível a atenuação da responsabilidade do Estado.
Dito tudo isso, você deve estar se perguntando: “professor, mas eu já vi julgados do STJ aplicando a teoria da interrupção do nexo causal ou da causalidade direta e imediata... Por que você está falando sobre a causalidade adequada?”
Tema para os próximos posts.
Abraços,
Caio.
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1. José Aguiar Dias. Da Responsabilidade Civil, Volume II, 10ª Edição, Forense, Rio de Janeiro, 1995;
2. Sérgio Cavalieri Filho. Programa de Responsabilidade Civil, 11ª Edição, Atlas, São Paulo, 2014;
3. Alguns autores, com quem se concorda, afirmam que é tecnicamente mais correto falar-se em fato exclusivo da vítima ao invés de culpa exclusiva da vítima, pois, cuidando-se de elemento inserido na análise do nexo causal, há que ser averiguado objetivamente. Todavia, para fins de prova, recomenda-se utilizar a expressão tradicionalmente acatada pela doutrina e jurisprudência: culpa exclusiva da vítima.
4. Tudo que se afirmou sobre a suficiência da culpa da vítima aplica-se à culpa ou fato de terceiro. Assim, se a melhor oportunidade para evitar o dano tiver sido de terceiro, de igual modo restará rompido o nexo causal, como no caso do motorista bêbado e na contramão.