...e então decidi contar uma história sobre obstinação.
Peço licença para o tom pessoal e inédito que virá nas próximas linhas.
Quero contar um pouco sobre como me apeguei de maneira obsessiva à ideia de passar em concurso público.
Muitos fatores contribuíram para que minha mentalidade estivesse adequadamente alinhada e fosse capaz de me colocar em movimento.
Mas eu quero destacar um traço particular.
Eu nasci em uma família rica.
Meus pais eram milionários em amor e em cuidado. O grande objetivo de suas vidas era nos educar, eu e meu irmão.
Fora isso, não sobrava dinheiro.
Minha mãe era professora. Meu pai trabalhava na padaria da minha tia, antes de se tornar auxiliar administrativo em algum órgão público municipal.
Estudei em escola privada com a ajuda muito bem-vinda da patroa do meu pai.
Até os 12 ou 13 anos de idade, os únicos transportes da casa eram duas bicicletas.
Depois disso, meu pai conseguiu comprar de uma prima uma motoneta Honda Dream 100 cilindradas, que já está fora de linha.
Durante seis ou sete anos, a Dream nos carregou. Basicamente em duas viagens: na primeira, meu pai levava minha mãe; na segunda, eu e meu irmão.
Até que os filhos passaram no vestibular em duas universidades federais, uma em São Luís/MA, outra em Teresina/PI. Felizmente, o interior onde moram os pais fica logo ali no meio das duas capitais. Nada mais do que 250km para cada lado.
Mesmo assim, a Dream não venceria o desafio de visitar os filhos. A distância, embora curta para qualquer carro, era demais para uma motoneta de 100 cilindradas.
Então meus pais decidiram, no segundo ano de faculdade, que aquele seria o momento de enfrentar o medo de "dever o banco". Não havia outra saída.
O ano era 2010 e conta foi feita para encerrar nos 60 meses seguintes. Sem entrada.
O palio fire 1.0 estava na garagem.
Foi o primeiro carro do meu pai. Comprou aos 46 anos, para quitar aos 51.
A despeito da preocupação com o financiamento, estávamos felizes. As visitas seriam mais frequentes e, quando estivéssemos juntos, bastaria uma viagem.
O terceiro ano de faculdade iniciou.
Com ele eu enxerguei a possibilidade de aliviar o bolso dos meus pais. Eles tinham dois filhos em duas capitais diferentes, além do financiamento que teimava, vez ou outra, em atrasar.
Era hora de estagiar. Claro, de forma remunerada.
Fiz alguns processos seletivos. Passei em todos.
Os três que assumi, passei em 1º lugar: MPT, DPE/PI e TJ/MA. O último, para comarca de Timon/MA que fica ao lado de Teresina/PI, onde moro.
Embora a lei não permita, cumulei inicialmente os três estágios. Pela manhã, estava oficialmente no MPT, que era vizinho do núcleo de Direitos Humanos da DPE/PI. Entre um parecer trabalhista e outro, atendia algum assistido ali do lado.
O melhor de tudo era que ambos estavam a uns 2km de casa. O trajeto era feito a pé. Ia sem reclamar, mas a volta meio-dia sob os diários 40º de Teresina/PI testavam a minha resignação.
Alguns meses passaram e, em determinado momento, passei a achar perigosa a empreitada de cumular, lado a lado, dois estágios. Foi quando pedi para ser lotado em um núcleo de segundo grau da defensoria que não tinha local físico próprio. A desculpa para o home office era perfeita. Deu certo. Dois estágios estavam resolvidos.
Naturalmente, a tarde sobrava para estagiar no TJ/MA. O fórum, por razões óbvias, não era em Teresina/PI, mas bastava atravessar a ponte. Pagava bem. Assumi feliz.
Penso que o trabalho e o decorrente senso de responsabilidade me engrandeceu.
Senti pela primeira vez que a vida adulta tinha chegado. Agora de verdade.
Senti que havia apenas uma pessoa responsável pela minha vida e eu não conseguiria vê-la, senão refletida.
Senti uma gratidão infinita pelos vinte anos de cordão umbilical com meus pais, que, contudo, não poderia mais persistir íntegro.
Afinal, já ganhava mais do que meu pai e estava muito perto de ultrapassar o contracheque da minha mãe.
Juntando tudo, ganhava pouco mais de R$ 3.000,00 por mês como estagiário de Direito. Era suficiente para me manter sozinho, apesar da correria encarada todos os dias.
Antes de pensar em descansar, no entanto, não poderia esquecer um detalhe...
Ainda era estudante. Precisava ir à noite, direto de Timon/MA para UFPI. Dois ônibus antes de jantar alguma coisa a R$ 0,80 (oitenta centavos) no restaurante universitário.
Suportei bem durante alguns meses.
Apenas suportei durante mais alguns.
Mas cansei.
Já não ligava para meus pais todos os dias, porque dormia antes de lembrar. Quando lembrava, a conversa se resumia à benção pedida e ao "boa noite, durmam bem".
Eles perceberam.
Como dizem por aí, "pai e mãe sabem das coisas". Estavam longe e eu não reclamava. Mas eles sabiam que algo poderia não estar tão bem comigo.
Foi aí que eles tiveram a ideia que só o amor de pai e mãe explica. Deciram caminhar por mim.
O palio fire 1.0 viajaria para Teresina, mas agora sem volta.
O que eles demoraram 50 anos para comprar me foi oferecido de bandeja. Relutei. Não poderia aceitar.
Eles insistiram:
- Filho, aceita. Você está precisando mais do que a gente. Aqui tudo é perto e a gente se vira.
O orgulho sucumbiu à necessidade.
"Se virar" significou para meus pais andar a pé e depender de caronas durante os próximos três anos.
Eles conseguiram o que queriam: minha vida foi melhorada.
Mais do que isso, foi marcada.
A chave virou.
Eu não poderia me formar sem condições de devolver o produto de meio século de esforço dos meus pais.
O concurso público se tornou meu alvo número zero. Era a única via possível, efetiva e rápida.
Passei a mirá-lo mesmo de olhos fechados, enquanto sonhava.
Se estivesse acordado, me forçava a lembrar a todo momento o porquê havia levantado da cama.
Todas as minhas horas possíveis eram vocacionadas para chegar lá.
Estava obstinado.
Queria muito. Mas queria de verdade e apenas isso.
Havia uma dívida a pagar. E era de amor.
Meus credores haviam me dado muito. Eu precisava retribuir não apenas no plano emocional. A substância era necessária. O gesto material precisava ser feito. E logo.
O resto da história talvez você já saiba. Fui aprovado em duas procuradorias estaduais antes de me graduar e mesmo antes do exame da OAB. A antecipação da colação de grau foi necessária.
Agora você sabe o que me motivou.
Você entendeu que para passar em concurso é preciso exagerar na obstinação. Ser excessivo mesmo na gana de vencer. Não serve o "querer por querer" ou o "querer dos sonhos".
Espero também que você tenha compreendido que passar em concurso público transborda o seu eu. É sobre melhorar a vida dos seus e principalmente isso.
A minha dívida tem sido paga. Sem última parcela à vista.
O primeiro carro que comprei não foi para mim. O segundo, sim. O terceiro, não.
Encontre aí dentro de você algo que possa realmente te sacudir. Olhe para o lado e sinta a necessidade absoluta de devolver o que você recebeu até aqui.
Queira vencer. Depois mereça.
Deus abençoe a jornada.
Bom domingo,
Caio.